“O amor foge ao dicionário e a regulamentos vários”, disse Carlos Drummond de Andrade em seu poema “As Sem Razões do Amor”. A definição vale para o trabalho amoroso que Maria Antônia Moreira desenvolve há 12 anos, desde que o serviço como zeladora de uma instituição de acolhimento lhe propôs dedicação maternal com o interno Lucas da Silva.
A relação entre Antônia e Lucas, filho do coração, toca em pontos que o simples cumprimento do seu ofício não daria conta. As limitações do jovem especial mudaram a dinâmica do lar em que foi abrigado, que de provisório foi a definitivo, mas também fez a maternidade aflorar pelo vínculo alimentado pelo tempo e pela confiança.
Lucas foi encaminhado para o Educandário Santa Margarida aos quatro anos, após ser abandonado na Rodoviária de Rio Branco sem documentos ou roupas. A idade se supõe por avaliação da arcada dentária.
Em função do trabalho no Educandário Santa Margarida, a rotina de cuidados com o rapaz de 22 anos que possui limitações motoras, de comunicação e visão, inclui a administração de remédios, cuidados com a dieta, acompanhamento durante sessões de fisioterapia e caminhadas matinais.
“Eu me preocupo muito com o Lucas, mesmo sem precisar, mesmo quando estou de folga”. É no afeto e na confiança conquistada que o laço se estreita. Quando o rapaz se recusa a fazer qualquer coisa, com jeitinho, afagos nas costas e pernas, com a voz calma sempre, dona Antônia o convence.
Como primeira atividade do dia, eles vão à caminhada ao redor da casa. Vencer a preguiça da manhã é desafio que ela enfrenta com autoridade: “Às vezes ele não quer ir. ‘Não, a gente vai!’. ‘Você vai sim, vai sim, vamos vamos, bora bora, levanta!’”, conta a zeladora.
“Eu me preocupo muito com o Lucas, mesmo sem precisar, mesmo quando estou de folga”
Maria Antônia Moreira
Antônia afirma que Lucas a compreende e responde. Ela nunca chega silenciosa ao quarto. Para começo de conversa, a primeira pergunta do dia é sempre: “Como está Lucas? Hein, Lulu, tá tudo bem?”. E continua: “E assim é todo tempo conversando com ele, porque é uma pessoa que precisa de atenção”.
Mesmo com gemidos, a resposta vem junto aos gestos de alegria, braços agitados, seguidos de outros chamados, atendidos prontamente: a hora dos remédios, que ela dissolve pacientemente em água antes de ministrar usando uma seringa; a refeição, bem amassada para facilitar que engula o alimento; o banho, com controle de temperatura já que ele prefere um banho quente: “se o chuveiro tiver frio ele dá um pinote e recua”, diz a “mãe”.
A quem ainda tem dúvidas se existe um amor filial, basta saber que os três filhos e oito netos de Maria Antônia conhecem Lucas, têm bastante carinho e o visitam frequentemente. “Por um dos meus filhos ser parecido com ele e pela forma como que trato dele, já chegaram a confundir e perguntar se era meu filho, nas consultas na Fundação [atual Hospital das Clínicas]”, diz.
Os momentos são descritos com graça, mas sempre há um fundo de preocupação. À beira de se aposentar, Antônia teme que Lucas não se adapte à sua ausência. “As meninas contam que ele não fica bem quando eu não estou. Em janeiro estive de férias e me disseram que ele ficou o mês inteiro tendo diarreia, passando mal. Eu gosto demais de cuidar dele! Queria poder fazer mais, mas não tenho condições de levar ele pra casa”.
Entrevistada às vésperas do Dia das Mães e declarando conhecer os limites de sua condição, diante de todos os possíveis presentes que poderia ganhar o único, e melhor para Antônia seria apenas que cuidassem bem do jovem Lucas.