Dona Adélia Carvalho era, nos anos 1960, a parteira-geral do Seringal Boa Vista, às margens do Rio Tarauacá, a sudoeste do Acre. De onde quer que viesse o chamado, para lá ia ela, de noite ou de dia, mata adentro, rio acima ou abaixo, “pegar menino”.
Mas houve uma vez em que era ela a parturiente. Sua cunhada Alice, também parteira, era quem a socorria nessas ocasiões. E quis a natureza que, no mesmo dia, na mesma hora, outra cunhada também entrasse em trabalho de parto. O que fazer? Quem ajudaria a parente?
Decidiu-se conforme o costume do seringal: a filha mais velha. No caso, Zenaide, de apenas dez anos. Apreensiva com a responsabilidade que lhe foi entregue, a menina foi até a casa da tia, do outro lado do Igarapé José de Melo, e, nas horas que se seguiram, descobriu um mundo: o desfecho de uma gestação, as dores de dar à luz, o corpo nu e aberto de uma mulher adulta, os líquidos do parto, o assustador surgimento de um bebê ensanguentado, um cordão a ser cortado, uma placenta a ser expelida.
Felizmente, tudo correu bem no batismo de profissão de Maria Zenaide de Souza Carvalho, que, a partir de então, passou a acompanhar a mãe no ofício. Aprendeu o uso ancestral de chás, alimentos e rezas específicos para o trabalho de parto. E, auxiliou o nascimento de quase três centenas crianças, incluindo irmãos seus.
“Já me levantei de madrugada para atender parturiente, já andei na mata com chuva e lama, já atravessei rio nadando, já pisei em pico-de-jaca [surucucu-pico-de-jaca] achando que era tronco, enfrentei de tudo”, relembra ela.
O salário? “Uma galinha, um corte de tecido… A família não tinha como me pagar, né, mas queria agradecer e me dava esses presentes. Eu ficava era feliz. Ia sem esperar nada e às vezes ganhava alguma coisa”, conta, com solidariedade de fazer corar muito doutor.
Casos difíceis? Já enfrentou. Como o parto da menina de 11 anos que teve um bebê de cinco quilos. “É arriscado, o útero é menor e as paredes mais finas”, relata. Mas conseguiu salvar os dois. Ou quando a chamaram para resolver um parto que estava estagnado, com a criança coroando havia oito horas: “Tem um jeito de pegar. Pus as minhas mãos por baixo do corpo dela, levantei com vigor e o menino logo saltou pra fora. O alto da cabeça estava até seco”. E o recorde: “Já fiz oito partos em um dia”.
Querendo aprender mais, aos 38 anos saiu do seringal e foi morar em Marechal Thaumaturgo, onde fez curso de auxiliar de enfermagem. Desde 2004 vive em Rio Branco. Em Pernambuco, fez curso de formação de parteira e fitoterapia. Djalma Rocha, seu marido há 45 anos, sempre a acompanhou. O casal teve um filho biológico, cinco de criação e dois netos.
Exatos 284 partos depois, quando volta a Thaumaturgo, não por acaso, demora “três horas” para atravessar a praça, conversando com todos que a abordam. O que mais ouve é o “Bença, madrinha!”, vindo daqueles que ajudou a nascer e batizou. O que a enche de satisfação.
Mas seus olhos se enchem de lágrimas quando, em contraponto à sua referência, fala sobre como as mulheres são frequentemente tratadas nas maternidades: “Estão chorando de dor e tem gente gritando com elas: ‘Cala a boca! Na hora de fazer achou bom’. É muita brutalidade, tenho muita pena!”
Com docilidade, ensina: “A gente tem que tratar a parturiente com todo o carinho naquele momento delicado, só lhe falar de coisas boas, ser amiga dela, ser uma pessoa de alta confiança, porque isso relaxa o corpo da mulher e ajuda o bebê a nascer”.
Já participou de muitos encontros de parteiras tradicionais. Em março, junto com duas colegas, representou o Acre num evento internacional em Campo Grande: “Foi lindo. Parteiras do Brasil inteiro, cada qual mais sábia que a outra!” E acredita numa fusão mais que interessante em termos de qualidade técnica e ética: “Se misturar a tradição com a ciência, como é que ficam umas parteiras dessas, hein?”
Zenaide também trabalhou com pesquisa, descobrindo parteiras pelo interior, e fez palestras em todo o estado. “Sei ensinar para qualquer um o que aprendi”, afirma, com naturalidade. Aos 59 anos, ainda faz partos domiciliares e tem um sonho: “Queria trabalhar nas maternidades, recebendo as parturientes e orientando profissionais para realizarem partos mais humanizados”.