Em momento histórico para o Acre, o governo Gladson Cameli leva, pela primeira vez, serviços públicos a uma das comunidades mais isoladas do planeta, o Parque Estadual Chandless, na fronteira do Brasil com o Peru. Nesta reportagem especial, saiba mais sobre como essas ações vêm sendo realizadas
É tempo de conciliação, de cidadania e de esperança numa das regiões mais isoladas do planeta. Em meio ao berçário de aves raras, répteis gigantescos e felinos vistosos, a expectativa de dias melhores renasce para 16 famílias, por meio do programa Ação Humanitária Itinerante, idealizado pelo governo Gladson Cameli para levar dignidade ao povo do Parque Estadual Chandless, a 233 quilômetros por água desde Manoel Urbano, numa viagem de mais de 12 horas de barco pelo Purus e, depois, pelo mesmo rio que empresta o seu nome à área de conservação.
A área, que foi palco de conflitos épicos entre brasileiros e peruanos exploradores do caucho nos idos de 1903 e 1904, há mais de um século clama por um olhar humanizado das instituições nacionais, algo que se concretiza agora, graças à sensibilidade do governador Cameli em criar um programa para melhorar a vida das pessoas que moram no local – e em outros rincões do Acre.
No último sábado, 29 de maio, pela primeira vez em 11 anos, 16 famílias, compostas por 76 homens, mulheres e crianças do Chandless receberam um governador de Estado, assim como uma primeira-dama, Ana Paula Cameli. A última vez que um chefe do Poder Executivo havia ido até a região foi em novembro de 2010, quando Binho Marques inaugurou a sede do parque.
Mais de uma década depois, a ação foi, desta vez, muito mais prática, objetiva e substancial: levar a primeira edição do programa Ação Humanitária Itinerante, um conjunto de serviços que vão desde consultas médicas e odontológicas, passando por exames laboratoriais e distribuição de medicamentos e de vacinação contra a Covid-19, à entrega de 16 placas fotovoltaicas que irão permitir a redenção energética para os moradores da região, possibilitando à comunidade mais qualidade de vida.
Nas palavras do governador, a garra e a coragem dos moradores da comunidade, por viverem em um dos lugares mais inóspitos do mundo, “os credenciam a ser muito mais valorizados pelo Estado brasileiro”.
“Na minha opinião, vocês são heróis, homens e mulheres que tanto necessitam da mão do Estado, mas que, apesar disso, sofreram muito tempo pela omissão dele. Todo o nosso esforço de chegar até aqui é por vocês. É para reafirmar que este governo tem compromisso com as pessoas, tanto com as das cidades quanto com as das áreas mais longínquas do nosso lindo estado”, afirmou Gladson, para uma plateia de ribeirinhos tradicionais, todos vivendo da economia de subsistência no Chandless.
No âmbito social, a população recebeu orientações sobre cuidados com a higiene corporal, esclareceu dúvidas em palestras sobre educação sexual e pôde entender mais sobre seus direitos e deveres, entre eles a Lei Maria da Penha, criada para coibir a violência de homens contra suas companheiras.
A Floresta Estadual Chandless é uma das cinco localidades que estão sendo contempladas pelo governo do Estado com ações jurídicas, sociais e de saúde. A edição conta também com o apoio do Tribunal de Justiça do Acre e da Superintendência do Ministério da Saúde no estado.
Por isso, ainda no sábado, como parte da Ação Humanitária Itinerante, as instituições presentes selaram um acordo de cooperação técnica que avalizou mais quatro edições do programa, a serem realizadas ainda no mês de junho nas florestas do Rio Gregório, do Mogno, do Rio Liberdade e do Antimari.
Desse modo, assim como no Chandless, os moradores dessas áreas estaduais, também destinadas à conservação ambiental, serão contemplados pela ação governamental.
Na vastidão verde, amoxicilina é providencial a ataque de arraia
Um bicho cravou o ferrão no pé esquerdo da menina Ivaneide Pacaya, de 10 anos, quando ela brincava com os irmãos numa parte rasa do rio. O esporão de arraia atingiu em cheio o lado interno do pé da garota, dilacerando músculos e nervos e injetando uma dose lancinante de toxinas que a fizeram desmaiar de dor.
Dez dias depois de muito choro, febre e inflamação, e sem tomar praticamente nada que não fosse beberagens caseiras a partir de ervas, a menina finalmente foi atendida por uma médica do programa Saúde Itinerante.
Ela foi ao encontro dos serviços do governo levada pela mãe, Ivanilde Pinho, numa viagem de pouco mais de uma hora, descendo o Rio Chandless até a sede do parque, onde a equipe do Ação Humanitária Itinerante foi assentada.
“Está bem melhor agora. Cicatrizou rápido, graças a Deus”, alegrou-se a genitora, enquanto a filha espantava uma nuvem de mosquitos sobre a ferida. A prescrição médica: um frasco de amoxicilina líquida e uma pomada de neomicina para passar sobre o ferimento.
“Sabe, seu menino, quem dera nós tivesse [sic] um atendimento assim aqui de vez em quando. Nos meus 36 anos de idade, nunca tive essa oportunidade”, afirmou Ivanilde, em tom de agradecimento, enquanto pegava a ficha para outro atendimento, com o médico ginecologista Luiz Roberto Vargas. O resultado do exame ela pegará em 30 dias, no Hospital Geral de Manoel Urbano.
Já os gêmeos Naídes e Naísses Peres se queixavam de dores no estômago. Eles têm histórico de gastrite. Descendentes de peruanos, cedo perderam os pais, e os demais familiares voltaram para o Peru. Desde então, vivem numa localidade à margem direita do Chandless, próxima da sede do parque, praticamente como viviam os seus ancestrais, do plantio de arroz, da mandioca e do feijão, e da caça e da pesca.
A última endoscopia de Naídes foi há dez anos, numa viagem a Pucallpa, cidade peruana a cerca de 510 quilômetros da área de conservação, em linha reta.
A dieta dos dois é à base de carne de animais silvestres salgada e exposta ao sol, farinha de mandioca, feijão e arroz. Os dois primeiros alimentos podem estar contribuindo para potencializar os problemas de acidez no estômago que os aflige, segundo a médica.
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“Não temos geladeira e nem luz. Agora é que as coisas estão melhorando por aqui, com as placas de energia solar que recebemos do governo”, afirmou Naídes. Para o incômodo no estômago, os gêmeos receberam cartelas de omeprazol e frascos de Gastrol do programa Saúde Itinerante.
“Fica o orgulho de contribuir para que as pessoas vivam melhor”, diz odontólogo
Os números do programa Saúde Itinerante no Parque Estadual Chandless foram extremamente expressivos, se considerado o total de moradores da região: 76 pessoas, entre homens, mulheres e crianças. Foram 307 atendimentos no total. Outras 97 doses de vacina foram aplicadas, sendo 64 da Fiocruz/Astrazeneca para Covid-19, 12 contra a influenza e outras 21 de rotina, que são as tetravalentes, para tétano e outras. (Veja os números abaixo).
Os procedimentos odontológicos foram 173. Por dois dias, os odontólogos Télio Wanderley Coelho e João Batista Leite Sobrinho trabalharam na restauração de dentes e em outras ações para melhorar a saúde bucal da população local.
“Mais do que prestar um serviço para a população, fica o orgulho de estar contribuindo para que essas pessoas possam viver melhor, sem o incômodo causado pela falta de cuidados com a saúde bucal”, ressaltou Coelho, com um ar de satisfação, de quem ama o que faz.
De acordo com a coordenadora do Programa Saúde Itinerante, Rosemary Ruiz, foram oferecidos à população do Chandless atendimentos em ginecologia, pediatria, clínica geral, infectologia, medicina da família e comunitária.
“Também ofertamos os serviços de ultrassonografia, de exame preventivo de câncer do colo do útero, o chamado PCCU, e os serviços sociais, além das entregas de medicamentos e dos exames laboratoriais”, explicou.
Distanciamento geográfico, infelizmente, não é barreira para fake news
Quando o governador Gladson Cameli subiu o barranco para se encontrar com a comunidade, uma das mensagens – entre tantas que ele trazia em sua cabeça para compartilhar com a população do Chandless – era a do risco das fake news, como aliadas da desinformação, e que teimam em prejudicar a imunização das pessoas contra a Covid-19.
E, mesmo diante de uma longa exposição de motivos apresentada pelo governador, houve aqueles que não quiseram ser imunizados, porque continuam impressionados por um conceito perverso que se formou na comunidade, desde que alguém chegou da cidade com a conversa de que a vacina contra o coronavírus “faz o corpo humano contrair a marca da besta”, contida no livro bíblico do Apocalipse, numa referência ao diabo e ao fim dos tempos na Terra.
Antonio Davi Mamaré da Silva, 42 anos, foi o primeiro a receber o imunizante, aplicado diretamente pela coordenadora do Programa Nacional de Imunização (PNI), Renata Quiles.
Para a reportagem, ele disse: “Eu sei que tudo não passa de besteira. Besta é quem não toma e que pode até morrer, mas eu penso assim: quero viver mais, de preferência com essa doença bem longe de mim. Então, por que não tomar?”, analisou.
Conforme Renata Quiles, mesmo havendo quem não quisesse aderir à vacinação, o trabalho do PNI no Chandless pode ser considerado significativo. “Foi proveitosa a nossa vinda e lamentamos por aqueles que não querem tomar a dose, mas ficamos felizes por aqueles que entendem a importância da vacinação”, avaliou a profissional.
Os números do Saúde Itinerante no Chandless
Consultas médicas
Medicina da Família: 39
Pediatria: 16
Ginecologia/Obstetrícia: 10
Total: 65
Procedimentos
Serviço Social: 4
Receitas médicas atendidas: 61
Exames
Ultrassonografia : 5
Preventivo do Colo do Útero: 4
Exames laboratoriais: 20
Hemograma: 2
Teste Rápido Covid-19 dos tipos IGG e IGM: 15
Swab Covide-19-Antígeno: 1
Palestras: 5
Entrega de kits diversos para a população: 54
Total: 307
Política para Mulheres acolhe homens e mulheres com o mesmo carinho
Vocês sabiam que o nosso papel aqui é olhar para cada um de vocês na sua individualidade? Sabiam também que existem vários tipos de violência, não somente a violência física? As perguntas foram parte de uma conversa informal entre as mulheres da comunidade do Chandless e a advogada Isnailda Gondim, diretora de Políticas para as Mulheres, órgão vinculado à Secretaria Estadual de Assistência Social, Direitos Humanos e Política para as Mulheres.
O grau de entrosamento de Gondim e sua equipe – primeiro com o público feminino, e, num segundo momento, com os homens da região – chegou a impressionar quem apenas participava como observador.
Ambas as reuniões começaram como uma conversa despretensiosa, e em cinco minutos a impressão que se tinha é que todos já se conheciam há muitos anos.
“E é pra ser assim”, explicou a diretora. “As pessoas precisam sentir que somos amigos delas. Que o governador teve essa sensibilidade de vir até aqui com a sua equipe para olhar para eles e oferecer o melhor que o Estado pode conceder, para que vivam com um mínimo de qualidade de vida e respeito mútuo”, ressaltou.
Por isso, o trabalho da Diretoria de Política para as Mulheres no Chandless foi tão amplo que abrangeu desde a formação de grupos de mulheres para, num futuro próximo, compor grupos de costuras, colchas de retalhos e crochês, por exemplo, até técnicas de leitura psicológica e corporal, a fim de identificar se o marido pratica algum tipo de opressão psicológica. Aliás, sobre esse tipo de violência, é muito comum que a companheira, dependendo do seu nível de escolaridade, entenda ser algo normal, o que não é.
Com as mulheres, o papo foi assim: “Olha, gente, assim como existem os estudiosos da natureza, existem também os estudiosos do Direito. E é meio assustador quando vemos que os agressores moram dentro de casa. Mas vocês não podem ficar caladas diante de uma agressão, seja um soco no rosto, um puxão de cabelo, seja um xingamento ou uma ameaça”, alertou a titular da Diretoria de Política para as Mulheres.
Entre os homens, a atividade foi igualmente proveitosa, com destaque para a participação do morador Jerônimo Lostranaud, de 65 anos, um dos mais antigos da área, e o que mais respondeu às dinâmicas apresentadas pelas profissionais.
Ao serem indagados sobre como deveriam tratar uma mulher, Lostranaud foi o primeiro a disparar: “Como uma rosa. As nossas mulheres são como rosas que devem ser regadas com amor a toda hora. Do contrário, elas morrem e vão deixar de ser sua mulher. Então, o seu grande amor seca e morre”. A declaração encantou os presentes que formavam a equipe da Diretoria de Políticas para as Mulheres.
Comunidade deve ganhar selo de certificação de produtos ecologicamente corretos
Da parte da Secretaria de Estado de Meio Ambiente do Acre (Sema), a valorização do homem da Amazônia está na principal pauta das ações da administração Cameli, segundo o entendimento do titular da pasta, Israel Milani; algo que, pelo menos na Floresta Estadual Chandless, há muitas décadas não se dava, ao longo de governos anteriores.
“Dessa forma, o programa Ação Humanitária Itinerante é o início de um projeto que já tem um significado muito grande para todos nós, porque, pela primeira vez, mesmo com a pandemia de Covid-19 tendo atrapalhado um pouco, tivemos odontólogos aqui, só para citar um exemplo, e porque ouvi também um morador me dizer da felicidade de, pela primeira vez na vida, apertar um botão na parede e acender a luz de sua casa”, pontuou o secretário Milani. Ele se referia ao ribeirinho Antônio Iunbato Gonçalves, de 70 anos, um dos contemplados com as placas fotovoltaicas que vão proporcionar energia solar convertida em energia elétrica para a sua família.
E, como prova viva de que as administrações passadas seguiam com as costas viradas para os ribeirinhos do Chandless, estão os gêmeos Naídes e Naísses Peres, que abrem esta reportagem. Afirmou Naídes que, depois da energia solar, “incentivos para a produção, como a aquisição de uma batedeira ou de uma trilhadeira de arroz”, por exemplo, seriam de muita valia para os produtores locais.
“Nós temos a perfeita noção de que o Chandless é uma área de conservação ambiental, e que não podemos, por força de lei, ampliar nossas áreas de plantio, mas todos deveriam entender que poderíamos ter mais facilidade no pouco que produzimos com o auxílio dessas máquinas”, completou ele, com o pensamento lúcido de quem só quer o melhor para a sua comunidade.
Outro ponto seria a valorização do plantio de feijão, por meio de um selo de certificação de origem e autenticidade, como produto ecologicamente correto. Sobre isso, o selo verde de produto orgânico é visto como muito positivo pelo técnico Celso Nascimento, da Secretaria de Indústria, Ciência e Tecnologia do Acre.
“Acredito que todo mecanismo que favorece o produtor sem degradar a floresta é bem-vindo, porque traz vantagens para todos. E a certificação é uma delas. Aqui no Chandless, eles têm um feijão de excelência. Então, por que não o certificar com um selo de origem ecologicamente correta? Com certeza, geraria um valor agregado altíssimo sobre o produto e melhoraria a vida do produtor daqui. Trata-se de algo que podemos levar para análise do próprio governo”, sugeriu Nascimento.
Nesse caso, além do feijão, há ainda a produção de chocolate, a partir do plantio de cacau, que igualmente poderia ser aproveitado.
A boa notícia é que a deputada federal Vanda Milani (Solidariedade) destinará cerca de R$ 10 milhões em emendas de bancada para a compra de implementos agrícolas, como colheitadeiras, aradores e até um trator para os pequenos agricultores e agroextrativistas do Acre.
Para o Chandless, a reivindicação da trilhadeira de grãos já está atendida pela parlamentar. “Direcionamos alguns recursos diretos para as secretarias, incluindo a trilhadeira, de que eles tanto precisam aqui, e que chegará mais rápido, já que não precisa passar pela Prefeitura de Manoel Urbano, mas pela Sema”, explicou a deputada.
Volume de investimentos na área ainda é muito baixo
Para Ricardo Plácido, coordenador do Parque Estadual Chandless, décadas de descaso com a região fizeram a população perder as expectativas de alguma melhora em suas vidas. “Elas já estavam bastante céticas quanto a alguma possibilidade de mudanças positivas nas suas vidas”, diz. “Então, a vinda do governo Gladson Cameli ao parque dá uma nova injeção de ânimo”, acredita.
Os recursos que chegam para a Floresta Estadual do Chandless são originários do programa Áreas Protegidas da Amazônia, o Arpa, do Ministério do Meio Ambiente.
No entanto, de 2019 até o presente momento, foram executados R$ 408,4 mil, de um total de mais de R$ 1,5 milhão. Plácido explicou que a baixa execução para o que foi planejado para o biênio 2020/2022 se deve à mudança de gestão do parque e aos efeitos da pandemia de Covid-19.
“Esses fatores nos travaram muito em 2020 e 2021. Mas pretendemos executar o recurso ainda neste ano, nas diversas frentes de atividades planejadas para o parque”, afirmou. Os recursos financiados pelo Fundo de Transição do programa Arpa financiam diversas unidades de conservação na Amazônia.
Os números de investimentos foram drásticos em gestões anteriores, quando entre 2014 e 2015, por exemplo, foram usados apenas pouco mais de R$ 109,4 mil inicialmente. Entre 2016 e 2017, aumentou para pouco mais de R$ 658,3 mil e, de 2018 a 2019, foram pagos R$ 714,5 mil. O governo do Estado também é obrigado a fazer uma contrapartida de cerca de R$ 100 mil por ano.