Nas últimas semanas, quando se registrou a maior enchente do Acre, dois ministros vieram apresentar o apoio do governo federal ao estado. Entre as chegadas e partidas ministeriais, um me chamou a atenção: Carlos Eduardo Gabas, ministro da Previdência Social. Durante coletiva o representante da presidência fez um relato diante de câmeras e dezenas de jornalistas. Um testemunho sobre o que dias atrás eu também observara.
Gabas disse que, quando acompanhado por sua equipe chegou ao Acre, imaginava que encontraria um estado desorganizado, que veria pessoas desesperadas pelas ruas. Mas, enganou-se. Declarou-se positivamente surpreendido pelo exemplo que encontrou em meio ao caos.
Mas por que não nos surpreendemos com isso?
Creio que por ser um estado que nasceu nas cabeceiras de rios e igarapés, o povo acreano e o governo sabem como lidar com transbordo de mananciais. Evidente que não estamos preparados para lidar quando atinge nível de catástrofe, mas há de se reconhecer que existe um preparo e, até mesmo, uma rotina pré-estabelecida quando tal fenômeno é registrado.
Logo que se confirmam as previsões de que o rio chegará às moradias, o Parque de Exposições começa a ser preparado para tornar-se uma minicidade. Boxes são construídos, equipes de apoio chegam ao local para catalogar os pertences dos que são abrigados, para identificar animais domésticos.
Além do acolhimento, outros serviços são ofertados, como assistência médica, três alimentações diárias, distribuição de fraldas e mingau para bebês, policiamento. Ativa-se uma rádio comunitária, onde surgem até pedidos de casamento, montam um telecentro para que a comunidade que se estabelecerá ali acesse a internet e, ainda, disponibilizam rede wi-fi, entre outros serviços. Tudo gratuito, assegurado pelo governo e prefeitura.
É lógico que os abrigados prefeririam estar em suas casas. Mas essa acolhida é fundamental. Minimiza a dor de quem deixou seu lar porque a água tomou conta. Mas, será que é assim nos outros estados? Não. Por isso o próprio ministro Carlos Eduardo Gabas admirou-se.
Eu tinha até ouvido de equipes da Defesa Civil Nacional, em 2012, que o Acre tratava essas situações de maneira atípica. Contudo, confesso, não dei a devida atenção a essa observação na época. Confesso também que só percebi isso de maneira mais nítida quando estive em outro estado amazônico que também fora assolado por uma enchente histórica, ano passado. Testemunhei o abandono das vítimas da enchente. As pessoas estavam largadas à própria sorte. Não recebiam assistência diária. No máximo, recebiam sacolões e água potável. O governo, municipal ou estadual, não se organizava para por ordem na situação, nem a comunidade tinha condições de fazê-lo, porque não estava habituada a tal fato.
Diferente do que se via aqui no Acre. Temos um ambiente preparado para montar e estruturar assistência a vítimas de enchentes. Localizada no Corpo de Bombeiros, a sala tem equipes especializadas. Homens e mulheres trabalham com logística, avaliação meteorológica e tudo mais que a situação exige. Telas de tevê mostram imagens de satélites, em tempo real, que monitoram cada milímetro de chuva que cai na região ou na bacia dos rios que cortam o estado. É um universo paralelo dentro do Corpo de Bombeiros. Ali pulsa toda nossa gestão da crise.
Conheci essa sala em 2012, quando o Rio Acre estava com alto nível e chegou a inundar 70% de Brasileia. Na época, eu era repórter da assessoria de comunicação do governo. Me aproximei mais do local em 2014, quando veio a cheia histórica do Rio Madeira. Naquele período, o Acre travou uma verdadeira operação de sobrevivência. Vencemos a guerra. Sobrevivemos ao caos.
Gabas tem razão de admirar-se com o que encontrou na capital. O Acre é uma lição de solidariedade, de superação. O Acre é uma lição de ordem ainda que diante do caos. Mas custa-nos reconhecer isso.
Boa parte da população alagada já está de volta a seus imóveis. Alguns perderam, além de móveis e eletrodomésticos, importantes elementos de registro de suas histórias: documentos, objetos de afeto, fotos de família. Mas recomeçam sem grande alarde porque sabem que somos capazes de nos reerguer depois da enxurrada. Acho que isso vem no modo acreano de ser. Nossos descendentes, os nordestinos, fugiram da falta do que hoje nos alarma. A água passa. A mesma água que nos tirou de casa é a que ajuda a renovar o ambiente e nos deixa aptos a reiniciar a vida.
* Jornalista, subeditora da Agência de Notícias do Acre