Conheça Adelino de Almeida, ministro da Palavra na Resex Cazumbá, e a sua saga de levar o catolicismo às colocações de seringais mais remotas da Amazônia
Pê-pei, pêi, pêi-pêi. O motor de rabeta dava os últimos suspiros, ressonando próximo do barranco, antes de aquietar-se na escada do ancoradouro, quando Adelino alcançou no bornal o Santo Rosário de cerejeira e o livro da catequese para garantir que não caíssem n’água no desembarque. Por mais uma vez, ele faria a desobriga naquelas paragens do rio Caeté, lar de crianças descalças e de mulheres e homens desdentados, mas nem por isso menos sorridentes. Gente humilde que via na figura daquele moço a maior autoridade espiritual que já passou por aquelas bandas.
Como o apóstolo Pedro, que ganhou mais de três mil vidas para Jesus, Adelino Nunes de Almeida quis fazer o mesmo. Só que selva a dentro, na década de 70, na vastidão da floresta quase sempre desafiadora, de clima adoçado pela melodia do Fri-frió, o pássaro seringueiro cuja goela é do tamanho do mundo, dada à potência do seu canto.
Por toda a vida, Adelino foi servo da Igreja Católica. Seguidor fiel dos seus preceitos desde criancinha. Devotado ao Evangelho de São Lucas e à imagem de Nossa Senhora das Graças, admite que não chegou a “três mil vidas salvas para Jesus” como fizera Pedro. Mas deu a sua tacada. Conquistou, não só almas para o Filho do Homem, quanto tratou de doenças e prescreveu até remédios. Ganhou o respeito de dezenas de famílias de seringueiros e agroextrativistas.
Até hoje, aos 86 anos de idade, o reverenciam como ministro da Palavra [de Deus] no interior de uma das áreas de maior biodiversidade do planeta, a Reserva Extrativista Cazumbá-Iracema (Resex Cazumbá), entre os municípios de Sena Madureira e Manoel Urbano, onde o conhecemos.
Embora o seu tempo de contribuição na região remeta aos anos 70, na Resex ele fixou residência há 25 e, desde então, auxilia a comunidade como secretário da Associação dos Seringueiros do Seringal Cazumbá.
“Nunca gostei da cidade. É aqui o meu lugar”, diz Adelino, de semblante tranquilo, olhos claros, voz suave, pele alva.
Apressou-se a ajeitar um dispositivo auditivo no ouvido direito. Depois, foi buscar no quarto o segundo, o do ouvido esquerdo, para ouvir melhor o repórter. O Santo Rosário foi a sua maior arma de evangelização. Conhecido também por terço, ele consiste de uma corrente de nós ou de esferas de madeira atadas a um crucifixo, em que o fiel recita uma série de preces, normalmente o Pai Nosso e a Ave Maria.
“Nessa época [em 1970] as pessoas que moravam na floresta não tinham muito contato com a Igreja. Também não havia padres. Quando aparecia um por aqui era de quatro em quatro anos. E nesse tempo, a religiosidade do povo era rezar o terço. Eu me acostumei com aquilo, porque meus pais foram ‘terceiros’”, afirma.
Em 1972, o ritmo de trabalho da Igreja mudou. “Então os leigos, como eu, passaram a tomar conta das atividades que eram dos padres”, explica Adelino. A desobriga é o ato de catequização, o equivalente à pregação entre os cristãos evangélicos.
Na sala da casa, há uma grande mesa repleta de livros. Gosta de ler. E de tudo. Tem desde as obras ‘Coronel de Barranco’ e ‘Plácido de Castro’, ambas do escritor Cláudio de Araújo Lima, ao manual clássico de medicina alternativa ‘Onde não há Médico’, de David Werner. Coleciona também um vasto acervo de bíblias e de livretos de catequese e doutrinas católicas.
“Outro dia chegou uma mulher aqui de muito longe e me prometeu uma caixa de livros. Nem acreditei muito, mas dois meses depois, as obras chegaram. Aumentei minha biblioteca”, sorri Adelino como quem ganhou na loteria.
Uma vida dedicada à caridade
A Superintendência de Campanhas de Saúde Pública (Sucam) foi o seu primeiro e único emprego formal. Antes disso, quando ainda menino, ajudara o pai a cortar seringa nos seringais de Boca do Acre, em 1963. Depois, com a morte dos genitores e vendo a família debandar, foi ser guarda da Sucam. Hoje vive com a aposentadoria do órgão que mais tarde virou Fundação Nacional de Saúde.
Combateu a malária e pegou malária também. Aliás, uma não, várias. Na região do Caeté, assim como em muitas outras da Amazônia, era comum testemunhar pessoas sendo enterradas em redes após perder o combate para o mosquito ‘miserável’ de nome invocado: anopheles (se pronuncia anófeles).
Adelino trabalhou borrifando DDT, o veneno para o inseto, e que décadas depois viria a ser o responsável por inúmeras mortes e problemas neurológicos em”‘ex-soldados da Sucam”. Sobreviveu sem nenhuma sequela que não seja a perda da audição. Mas não se sabe ao certo se ela teve alguma relação com o risco do inseticida.
O ex-guarda da Sucam nunca se casou. Nem constituiu família. Hoje, é visitado quase sempre pela sobrinha, Maria da Conceição Almeida, de 62 anos. Uma vez no mês ela vai à reserva para checar o seu estado de saúde e interagir com o tio.
“A solidão é ruim. Sei que meu tio está bem aqui, rodeado de amigos, mas nunca é como a família. E eu sou hoje a única família dele”, ressalta Maria da Conceição.
Com uma área de mais de 750 mil hectares, a reserva extrativista Cazumbá-Iracema é o lar de 360 famílias. Elas vivem da borracha e da castanha, os principais produtos do extrativismo vegetal, embora utilizem-se de outros recursos, como a madeira, o óleo de copaíba, o açaí, o mel e o patuá.
No último dia 12 de julho, o governador Gladson Cameli entregou mais uma escola de ensino médio, um laboratório de informática e o centro de artesanato Cazumbarte na comunidade, que é classificada pelo Instituto Chico Mendes de Biodiversidade, o ICMBio, como referência no Brasil em inclusão social com consciência ambiental.