Não sei quem inventou a data e com que objetivo. Imagino que existam versões utilizadas pelos comerciantes em diferentes regiões do mundo. A que conheço parece com as de outras datas como o Dia das Mães, Dia dos Namorados ou Dia das Crianças, todas induzindo as pessoas a comprarem presentes.
Como socialista à moda antiga, sempre procurei livrar meus filhos da hipocrisia da sociedade consumista: “Isso é coisa da burguesia” – argumentava, num tom quase raivoso, sem me dar conta de que eles acabavam passando por algum tipo de humilhação diante de colegas “alienados”.
Talvez fosse mais honesto eu ter dito a eles e a vocês que me leem agora que minha aversão a esse tipo de festejo está relacionada à minha origem de seringal, nos cafundós da floresta acreana, onde nasci e me criei. Por lá as relações familiares se expressavam sem trela a datas festivas. Até o aniversário de alguém da família era marcado apenas pelo cardápio do almoço. Invariavelmente, morria uma galinha caipira, grande e gorda, permitindo-se à mesa de refeições que alguém comentasse o motivo.
Creio que o estilo de educação formatado na floresta prevaleceu sobre o aprendizado que acumulei na cidade grande, incluindo as teorias revolucionárias de esquerda. Dessa forma eu teria resistido aos condicionamentos das comunidades conservadoras em que me meti. Até a fase adulta, meus filhos ainda se mostram encabulados ao oferecer presentes, mesmo no Natal.
Em raras ocasiões, entretanto, eles conseguiram romper com a “disciplina” para, a seu modo, homenagear-me. Uma delas foi em junho de 2004, quando completei 65 anos e me submeti a uma festa montada na casa de um amigo de Rio Branco, percebendo, desde a véspera, que haviam armado cumplicidade contra meus velhos hábitos.
Olha, os dois filhos maiores – Vássia e Tissiano – (tenho seis) me surpreenderam ao montar um painel com fotos minhas em diferentes momentos da vida, colando nele textos carinhosos e respeitosos. Nunca me senti tão pai e tão herói!
Lembram-se da música “Como nossos pais”, de Belchior, gravada e cantada nos anos setenta com insinuações à ditadura militar? Parece que estou vendo a saudosa Elis Regina se desmanchando de emoção no palco, ao interpretá-la!
Pois meu pai, Chico Martins, no qual me vejo, não vivia de homenagens; pelo menos, não da forma como se costuma dar provas delas. Era um homem de poucos afagos, ainda que o amor pela mulher e pelos filhos estivesse sempre subentendido. Na verdade, ele cultivava sentimento mais profundo: um pacto de afetos com as pessoas, os animais, as árvores e os sons das árvores; com os ventos, as chuvas e tudo o mais que a natureza oferecia.
A vida no seringal era tão silenciosa e contemplativa, e a fala tão desnecessária…
O afeto de seu Chico se escondia por trás de gestos duros, de difícil tradução. E isso quase nos fez intrigados, de mal um com o outro, como se diz. Eu, que numa determinada época me tornei arrogante a partir de leituras equivocadas, não conseguia ler a ternura que ele, já velhinho, transmitia através de olhos umedecidos e embaçados.
Uma vez juntei um grupo de amigos e fizemos um programa na Rádio Educadora de Macapá (Amapá), que pertencia à prelazia local, sobre o Dia de Finados. Lemos com voz solta e em jogral poemas de Manuel Bandeira, Carlos Drummond e João Cabral de Melo Neto, entre outros grandes poetas brasileiros.
Ao voltar para almoçar (era domingo pela manhã), vi que meu pai tinha estado o tempo todo com o ouvido colado no seu velho rádio Phillips, cujas válvulas gastas e quentes provocavam chiadeira…
Percebi, então – e minha mãe confirmou depois – que ele tinha chorado, em várias ocasiões ouvindo o programa. Um delas, quando li versos de Manuel Bandeira em que o grande poeta pernambucano recomenda:
“Vai ao cemitério, acende uma vela e reza. Não pelo pai, que está morto, mas pelo filho, que está vivo!”
A memória disso me dói tanto! Pai: hoje, celebro seu dia com muito respeito e uma enorme saudade.