O que você faria se descobrisse que o seu super-herói preferido é gay? Klark Kent deixaria de ser o Superman e não salvaria mais o mundo? Bruce Wayne deixaria de ser o Batman e não ajudaria as pessoas de Gotham City?
E se no lugar da cabine de telefone, o seu herói se trocasse no armário? Afinal, não é esse o local onde guardamos as roupas?
Sob o efeito de pequenas doses diárias de Kryptonita revestida de violência, preconceito e homofobia, a cada 19 horas um brasileiro é impedido de viver a própria jornada e ser o herói de sua vida.
E por falar em jornada, é possível contá-la sob a ótica do que Joseph Campbel nomeou de a jornada do herói, que apresenta 12 passos para se montar a estrutura de uma história. Ora, a história de alguém LGBTQIA+ não é uma história qualquer, mas pode ser enquadrada muito bem nessa estrutura. Vamos lá?
1º passo: O mundo comum
Esse é aquele momento em que todos somos iguais. Meninos, meninas, bebês. Somos crianças comuns, em um mundo comum, convivendo com pessoas comuns. Nossos pontos de identificação são apenas esses, o fato de sermos “iguais” a todos. Peter Parker, Diana, Tony Stark, João, Maria, Antônio.
2º passo: O chamado à aventura
Esse é o ponto de partida de qualquer herói, o conflito inicial. É nesse momento em que somos chamados à aventura da vida. Mas, será que essa aventura será fácil? Muito pelo contrário, isso nos tirará da nossa zona de conforto e nos fará entrar em um mar de dúvidas e incertezas. No caso desses super-heróis, o desafio influenciará diretamente o destino de suas vidas.
3º passo: Recusa do chamado
Esse é um passo que demora a ser cumprido e que para muitos leva uma vida inteira. São muitos medos, aflições. A vontade de ser quem se é de verdade chega como uma missão a ser cumprida, mas sempre acabamos por comparar a vida atual com a ideia de um caminho que será longo e difícil de percorrer. Então melhor seria permanecer em nosso mundinho, em nossa zona de conforto ou desconforto que não deixa de nos incomodar. Mas será que seria melhor mesmo que Steve Rogers continuasse a ser um rapaz franzino apenas com o sonho de servir ao exército americano?
4º passo: Encontro com o mentor
Esse é um momento tenso para os nossos heróis. É o momento em que se pergunta, assim como os personagens de Chapolin Colorado – E agora, quem poderá nos defender? Mas o Polegar Vermelho não aparece nas histórias da vida real, quando tudo que se esperava era que ele chegasse com a sua buzina paralisadora e parasse todo o tempo a nossa volta. É claro que alguns consegue encontrar um mentor, mas na maioria das vezes, o nosso mentor somos nós mesmos, que continuamos presos dentro do armário.
5º Passo: A travessia do primeiro limiar
Para aqueles que conseguem chegar até esse passo, este é um momento importante. Para um herói comum, seria o momento em que ele estaria pronto para vencer o limite entre o mundo conhecido e um novo mundo. É o instante em que Logan ganha as qualidades oferecidas pelo adamantium e, em troca, perde suas memórias passadas. Mas, no caso dos LGBTQIA+, nunca se está preparado para esse momento, no entanto é preciso enfrentar.
6º passo: Provas, aliados e inimigos
Com o pé fora do armário, é hora de enfrentarmos vários desafios diários que vão surgindo e dos quais nunca imaginávamos ter que passar. Porém, não é de dias fáceis que se formam heróis. Precisamos encarar as provações e adquirir a capacidade de descobrir com quem podemos contar de verdade. Pantera Negra sabe muito bem o que é isso ao se deparar com a traição de seu confidente W’Kabi e a lealdade da líder do exército, general Okoye.
7º passo: Aproximação da caverna secreta
É hora de recuar, ou melhor, é a hora em que nossos medos nos levam a recuar. Nessa etapa, os nossos heróis fazem uma pausa. Parece que todos os nossos medos voltam à tona do mesmo jeito de quando começamos a jornada. Mas isso nos fortalecerá para vencermos o que está por vir. A pausa de Thor ao ficar sem o martelo é necessária durante a preparação para a próxima batalha. É aí que ele produz o próprio machado para a luta contra Thanos.
8º passo: A provação
O título já diz tudo: provação. É como uma morte. E se tem um público que sabe o que é morrer todos os dias, estes são os nossos heróis LGBTQIA+. O inimigo muitas vezes é letal e os conflitos interiores ajudam a amplificar ainda mais a prova. Assim, é necessário juntar todas as forças, os conhecimentos e se reinventar, se transformar. Somente assim, a já heroína Jean Grey passa a apresentar ao mundo a verdadeira força que tem ao se transformar na Fênix, a mutante mais forte dos X-men.
9º passo: A recompensa
Depois de tudo isso, qualquer herói merece uma recompensa e isso sim vai transformá-lo em alguém mais forte. No caso dos nossos heróis, as recompensas são variadas, a depender de como eles vivenciaram e venceram a jornada até aqui. Há quem conquiste a “aceitação” dos pais, dos amigos. Há quem, durante o caminho, tenha brigado com pessoas que ama e chega neste ponto com a reconciliação. E há aqueles que, assim como eu, apenas alcançam a paz e a alegria por poderem ser quem são de verdade.
10º passo: O caminho de volta
Agora, chegamos ao nosso momento de reflexão. Já temos a convicção de quem somos e isso nos faz perceber que o caminho de volta poderá até ser perigoso e cheio de obstáculos, mas somos capazes de lutar e vencer cada um deles. Mas é preciso lembrar que, diferentemente dos demais heróis, onde a sensação de perigo iminente é substituída pelo sentimento de missão cumprida, nós sempre teremos um pé atrás. A absolvição, aceitação e reconhecimento pelos demais não é plena, não é completa.
11º passo: A ressurreição
E, como avisado no passo anterior, o perigo novamente bate à porta. É hora da última batalha. sabe quando os monstros de Power Rangers crescem e ressurgem quando a luta parecia ter terminado? Pois é, é hora de juntarmos todas as nossas forças e assim como um Megazord, salvarmos a todos, pois a guerra agora representa perigo para todo mundo. Após quase morrermos, vencemos e de fato destruímos o inimigo. Assim, renascemos para a nova vida. A metamorfose foi concluída.
12º Passo: O retorno com o elixir
Enfim chegou a hora de sermos reconhecidos. Voltamos ao local de origem no auge do nosso sucesso. É o momento em que vemos aqueles que tentaram nos prejudicar com seus atos de preconceito, ira, homofobia serem punidos (é difícil, mas lembre que esse é um artigo de opinião, podemos acreditar). Mas o mais importante ao final dessa trajetória é deixar claro que as coisas nunca mais serão as mesmas.
Analisando por essa ótica, mesmo diante de todos os obstáculos, me arrisco a dizer que melhor seria que de fato pudéssemos ser iguais aos heróis. Penso que a vida seria um tanto quanto mais fácil.
Antes de terminar, quero destacar uma frase que me marcou bastante enquanto a lia em uma rede social. “Nosso maior desafio da vida adulta é escolher quais partes de nós são o que somos de verdade e quais criamos para nos proteger do mundo”.
Um conselho que dou é que, independentemente de quem você é dentro da sigla LGBTQIA+, ou mesmo fora dela, SEJA VOCÊ O HERÓI DA PRÓPRIA VIDA.
Elenilson Oliveira é assessor de comunicação do Instituto de Administração Penitenciária do Acre (Iapen/AC), jornalista e acadêmico de publicidade e propaganda