Escrevo na primeira pessoa para que eventuais equívocos sejam só a mim imputados. Relembro aqui o início da tomada de consciência dos povos indígenas do Acre, que sempre viveram esquecidos até 1975 pelo Estado brasileiro, pelo antigo Serviço de Proteção ao índio (SPI) e pela Fundação Nacional do Índio (Funai).
Uma reunião feliz de antropólogos como Terri Aquino, o “Txai Terri”, e de outros que depois dele chegaram para estudar e produzir relatórios, foram a base do reconhecimento das terras indígenas. Alguns indigenistas como José Porfírio Carvalho, Ronaldo Lima de Oliveira, Txai Macedo, Armando Soares, Marco Antônio Mendes, Antônio Pereira Neto, Adolfo Killian e tantos outros iniciaram a caminhada do reconhecimento dos povos indígenas do Acre e de suas terras.
Instituições como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), a Comissão Pró-Índio do Acre (CPI), a Confederação Nacional de Trabalhadores da Agricultura (Contag), o Jornal Varadouro e a Igreja Católica, com Dom Moacyr Grechi, foram fundamentais no apoio aos índios.
Os indígenas que aqui estavam, fustigados pelo esquecimento, não tiveram o paternalismo de nenhuma instituição oficial ou não. Conseguir um facão, recebido como pagamento de trabalho semi-escravo nos barracões de seringais ou em armazéns de agropecuárias, custava semanas de trabalho suado na seringa ou limpando campo para a criação de gado. Quando descobriram seus direitos, entretanto, organizaram-se, uniram-se a quem os apoiava e, num processo ímpar na história do Brasil, viraram protagonistas da luta por suas terras e direitos.
Exemplar foi o diálogo do velho Sueiro Kaxinawá com um presidente da Funai, no tempo do regime militar. Ao ser indagado se queria presentes como balas calibre 22, camisas ou coisa que o valha, respondeu que isso ele comprava com seu dinheiro, que estava ali para reivindicar suas terras, para espanto do general de plantão na Funai.
Se a memória me trair, que me desculpem os índios, mas líderes indígenas incríveis daquele tempo têm que ser lembrados: Sueiro Kaxinawá, Mário Kaxinawá, Humberto Nukini, Irã ( Paino) Ashaninka, Antônio Pianko Ashaninka, Vicente Sabóia Kaxinawá, Manoel Apurinã, José Correia Jaminawa, José Orias Manchineri, Agostinho Manduca Mateus Kaxinawá, Raimundo Luis Yauanawá, Bruno Shanenawa e Nilo Kaxinawá, entre muitos, alguns ainda vivos e outros que já se foram. Esses ilustres homens indígenas iniciaram e lideraram o processo mais rápido de regularização de terras indígenas da história do Brasil.
O tempo passou, veio a redemocratização do Brasil. Os líderes acima foram envelhecendo e novas lideranças, aparecendo. Rapazes recém-saídos das aldeias procurando realmente entender o mundo dos brancos. Cresceram, estudaram, correram o mundo e aí estão, protagonistas dos destinos de seus povos. A lista é grande, ocuparia mais de uma página. São a segunda geração de índios na vanguarda do resgate da cultura e da economia de seus povos.
O Estado do Acre, no governo de Jorge Viana, criou uma Secretaria Indígena, hoje assessoria ligada ao gabinete do governador Tião Viana. Lá estão os índios inseridos no aparelho do Estado. A partir daí, o Acre se torna o Estado que mais dialoga com os povos indígenas e, na medida de suas possibilidades, cria projetos concretos para eles. Sem sombra de dúvida, não há, no Brasil, estado mais parceiro dos índios do que o Acre.
Hoje temos índios professores e agentes florestais treinados pela Comissão Pró-Índio do Acre, índios com mestrado, índios em universidades, índios funcionários da Funai, índios ensinando aos brancos como se protege o meio ambiente, índios negociando diretamente no exterior seus projetos econômicos, índios poliglotas, índios cineastas, índios preocupados com a proteção dos que ainda não têm contato. Índios, enfim, lutando para viver na plenitude de sua cultura, como índios que são em uma sociedade massacrante e globalizada que nos reduz a números de estatísticas econômicas.
Mas há muito que fazer e muito com que se preocupar. Nem tudo são flores! O cenário político do país se anuncia com nuvens negras para as minorias e para os índios. É tempo de unir forças, esquecer divergências internas e de se aliar com parceiros confiáveis.
Estou otimista, apesar de tudo. Os índios são especialistas em romper balseiros aparentemente intransponíveis.
Cuidem uns dos outros, unam-se como se uniram seus pais e avós, aconselhem-se com os mais velhos e sejam felizes. É o que desejo a vocês neste 19 de abril e sempre.
Velho do Rio. Apelidado de Meirelles.
* José Carlos Meirelles é sertanista