A homenagem póstuma, prestada por moradores do bairro, foi mais que merecida: a Pracinha do Seu Francisco ganhou nome e placa depois que o octogenário fundador se foi, em 2018. Em Curitiba, quem tenha passado com alguma atenção pela esquina da Marechal Mallet com Manoel Eufrásio, no Juvevê, há de tê-la avistado. Tão particular, acolhedora e familiar, mais parecia um quintal aberto.
Sem que nada lhe pedissem, de um terreno baldio Francisco Toda dedicou-se, ao longo de anos, a criar um ambiente de lazer e convivência. Provavelmente considerando que já tinha o suficiente para si, o aposentado almejava oferecer algo para o mundo, preceito de nobreza e altruísmo que bem assimilara de sua ancestralidade japonesa.
Antes das seis da manhã já estava na lida, como atestam vizinhos e trabalhadores das proximidades da praça. Muito se deu, e certamente mais recebeu, em autogratificação, senso de pertencimento e realização pessoal. Ainda por aqui, atraiu simpatia, respeito e apoio de voluntários, que mesmo depois de sua partida mantiveram os cuidados com o espaço.
Ali, de árvores antigas e frondosas, a sombra entremeada de raios de luz se debruçava, confortante e móvel, sobre flores coloridas em arranjo, não muito elaborado, que a atmosfera selvagem tem a sua graça e função. Livre e profusamente, nos canteiros circulavam borboletas e abelhas, embelezando e polinizando.
Já debaixo da amoreira adulta, periodicamente carregada de frutos, mesa e bancos de madeira em cores vivas, construídos e pintados pelo próprio Francisco, convidavam os visitantes para uma pausa, com direito à palinha do passaredo.
Próxima aos muros, havia a horta, onde tabuletas explicavam: leve o que desejar, mas por favor não arranque as raízes, para que outras pessoas também possam se servir. Com desconcertante generosidade, aqui e ali manifestavam-se as instruções de um legítimo educador. E não era tudo: ainda havia balanços e escorregador, gentileza dirigida às crianças de apartamento que moram no entorno.
Tomara que nenhuma delas tenha sido exposta à visão estarrecedora da retroescavadeira invadindo o remanso no último sábado, devastando o que podia a mando de um autodenominado proprietário do imóvel, que na verdade se encontra em litígio.
Eis que a vizinhança e integrantes da União Paranaense de Estudantes Secundaristas – a outra ponta da disputa, felizmente se deram conta do que acontecia a tempo de bloquear judicialmente o estrago total.
De outro modo, o que iriam responder as mães, pais, avós e babás aos pequenos, quando pedissem para levá-los à pracinha? Onde encontrariam coragem para dizer “não tem mais”? Como explicariam um porquê injustificável para aqueles que ainda sabem o que é essencial na vida? E os velhinhos, onde tomariam seu banho de sol, onde se vacinariam de natureza? Onde os estressados da vizinhança relaxariam?
No confronto de interesses então desencadeado, o que para alguns é fonte benfazeja de saúde física e psíquica, para outros não parece possível significar mais do que uma máquina prestes a emitir moeda: na via urbana, reproduzido um conflito de dimensão planetária, ameaçador, ultracontemporâneo e lastimável, que bem espelha o patamar atual da consciência humana.
Impulsionada por mutiladas crianças de outrora, que já não têm em conta o riso dos inocentes, sobre um reduto comunitário de encontros, brincadeiras, descobertas e trabalho cooperativo, a cobiça deseja instituir um cemitério de sonhos e alegrias.
É que a ganância tem o coração duro, os olhos e os ouvidos grossos, e a ninguém que acometa permite deliciar-se com o próspero espetáculo da multiplicação das folhas nos galhos, ou enxergar o labor natural e diuturno que transborda flores e frutos, nem escutar a melodia encantada dos passarinhos, que contabilizam mesmo é mais um dia a celebrar.
Na mente dos que idolatram tímidas vantagens que avaliam gigantes, a ilusão anseia por dividendos espúrios, para nos recintos palacianos, nos parlamentos e nas cortes legitimar o furto do bem-estar e da sobrevivência dos semelhantes e das demais espécies.
E esses, que pisam presunçosos e cínicos sobre a tristeza e o extermínio da vida, seguramente supõem tolo o proceder de seu Francisco e de todos os seres humanos que, esclarecidos e animados pelo amor, dignamente continuarão a postos.
Os demais que atentem, dia após dia, para a decisão registrada no fiel de suas balanças: que tipo de fortuna mais lhes importa cultivar?
Onides Bonaccorsi Queiroz é jornalista e escritora, revisora da Agência de Notícias do Acre